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A crise do leite de amêndoas

Há tempos eu tomava meu café com leite de amêndoas. Em uma terça ou quarta-feira, por aí, acordei e, como todos os dias, preparei meu café – gelado, 1 ⁄ 3 de café solúvel, 2 ⁄ 3 de leite de amêndoas, 3 cubos de gelo, um pouco de canela. Propaguei as maravilhas do leite de amêndoas a amigos, parentes, colegas de trabalho. Influenciei vários que, até hoje, provavelmente ainda tomam leite de amêndoas por recomendação minha (permita-me gabar das poucas marcas que deixei nesse mundo).


Todos sabiam que meu café, cereal, vitaminas, e seja lá o que eu inventasse que pedia um equivalente ao leite de vaca, era preparado com leite de amêndoas, de preferência sem açúcar e sabor baunilha, muito obrigada. Virou parte da minha identidade – assim como quem come carne mal-passada, ou não gosta de coentro, ou tira a cebola da comida.


Mas naquela terça ou quarta-feira, algo extraordinário aconteceu: simplesmente não conseguia suportar o gosto do tal leite de amêndoas. Meu palato o assimilou a palito de picolé. Sim, após anos tomando o mesmo bendito leite de amêndoas, a bebida teimou a adquirir um gosto amadeirado e tornou-se insuportável. Não tive outra escolha a não ser jogar fora o copo de café junto com a caixa inteira do leite vegetal.


Parece besteira, mas essa mudança interna entre meu corpo e o leite de amêndoas desencadeou uma crise de proporções épicas na minha vida.


Veja bem – era uma manhã infernal em Nova York, o calor beirando os 40 graus no pico de julho. Eu teria que desbravar a umidade e a sauna de pedra ao meu redor se quisesse comprar uma caixa de outro tipo de leite.



Caos instaurado; eu nem sabia que outro leite eu poderia gostar. Então pensei que mais tarde teria que sair de casa de qualquer forma pra ir trabalhar. Pensei no trabalho e no dia à frente, e a minha boca se encheu de um gosto mais amargurado que o leite de amêndoas.


Parada na cozinha com um café desperdiçado e o barulho do caminhão de bombeiros soando alto pela janela, meus pés descalços se viram sem chão. Desde quando eu não gostava de leite de amêndoas?


Desde quando eu já não gostava mais do meu trabalho?


Quem era eu – se já não gostava das coisas que antes eram partes tão intrínsecas de mim?


Olhei à minha volta, e vi que nada na minha vida fazia sentido. O apartamento apertado, o trabalho que não mais trazia felicidade para pagar o aluguel do apartamento apertado, o namorado que nunca estava presente, a cidade que nunca parava e a minha cabeça que só girava para tentar acompanhar aquilo tudo.


Vi-me presa na cidade que prometeu me libertar. Da carreira que me abriu as portas para o mundo, me vi fechada no mundo que criei. Aquela velha ironia de ser prisioneira de si mesma – das próprias expectativas, dos olhares dos outros, da vida que deveria ser. Estava por tanto tanto tempo nessa estrada, que não vi quando ela não era mais o que eu esperava que fosse. E eu não era mais quem eu antes fui e quem antes queria ser.


E acontece às vezes na vida que a gente se perde. É como dirigir distraído ouvindo uma música qualquer no rádio. As cores se misturam em um vulto do que ficou pra trás; as ruas e pessoas e o cotidiano ao redor como um descanso de tela da vida real. A gente se acomoda na mesmice daquela direção, não necessariamente porque estamos seguindo em frente, mas simplesmente porque o caminho está ali a frente.


De repente, sentimos um certo incômodo. A música já não é mais certa – a melodia irrita, as letras incomodam. O ar condicionado está frio demais. Vemos que a saída ficou pra trás e não estamos no caminho “certo”. Permita-me o uso de aspas, porque ultimamente tendo a acreditar que não existe caminho certo. Ou errado. Existe só o caminho que estamos. Por vezes, errar o caminho é evitar um acidente fatal. É conhecer uma entrada que leva a uma paisagem deslumbrante. É ter que parar no caminho e descobrir um lugar novo. Ou uma pessoa nova. Quanto mais caminhos eu caminho, mais eu me convenço que sempre estamos onde devemos estar.


Mas devaneio.


Voltando à nossa direção perdida – quando nos vimos desconfortáveis com o que está à nossa volta, sem mapa ou GPS, e nos encontramos naquele pânico de “onde estou”, “para onde ir”, “como volto para o caminho que eu conheço", sempre me ocorre como tanta vezes a vida sempre nos força a nos perder às vezes.


Esperta, até nos prega peças para nos distrair – justamente para perdemos a saída que deveríamos pegar. A vida, percebi com desgosto nessas minhas quase 3 décadas de andanças e perdições, tem uma aversão irritante ao cômodo – a grande ironia do confortável nunca ser o status quo.


Por tantas vezes, aparece um equivalente ao ar condicionado frio que incomoda e nos acorda daquele transe da mesmice do caminho de algum tempo. Após esse tempo distraídos pelo conforto do cotidiano, percebemos, como o ar condicionado que começou a incomodar, ou a música que já destoa e não mais serve de fundo aos pensamentos de sempre, que as coisas que antes entranhavam-se como fumaça no todo da nossa vida começam a se condensar, e adquirem peso; perdem então a função de conforto que antes tinham. Incomodam. Mas nos reinventam.


O café de sempre incomoda. O trabalho incomoda. A cidade incomoda. A rotina incomoda. Até aquele sonho de antes incomoda. Sem que você note, sorrateiramente aquilo que era só um pano de fundo costumeiro na sua vida se torna não só não mais ignorável, mas sim torna tudo em que você consegue focar.


E então nos vemos perdidos ao olhar a nossa volta sem saber onde estamos, por que seguimos, que saída devemos pegar. E em meio ao pânico e ao desconforto, um estranho fenômeno acontece – começamos a nos questionar tudo. Por que diabos estou aqui? Qual o propósito de ir? De existir? De se perder? Desse caminho que estou?




Qual o propósito de tudo?


Para mim, tive que engolir a realidade de estar à deriva junto com o desgosto do leite de amêndoas. E com aquilo, vi-me forçada a me encontrar em uma nova identidade, um novo propósito. Quem era eu agora? Do que eu gostava, o que eu queria?


O triste e belo da vida é que sempre seguimos buscando encontrar a nós mesmos – nosso propósito, nossa identidade. Mas é uma busca incansável — quando achamos que nos encontramos, nos vemos perdidos de novo. Somos mutáveis, vivemos para criar e nos reinventar. Para buscar novas entradas e novos rumos mesmo no rumo que queremos seguir. Somos várias versões de nós mesmos ao longo da vida, e ela não permite que permaneçamos os mesmos.


Que graça teria viver sem questionar nossos caminhos? Sem questionar nossos sonhos? Sem acomodar novas versões de nós — e os novos gostos e desgostos e quereres e não quereres?


Vivemos para encontrar felicidade no conforto de cada momento, e para encontrar a liberdade no desconforto daquilo que não nos serve mais. Entre curvas acentuadas e becos sem saída, caminhos de flores e chuvas de gelo, encontramos novos propósitos, ou mais propósitos aos nossos propósitos; e encontramos todos os eus que compõem um conjunto da nossa identidade sempre em construção.


Não moro no mesmo apartamento, mudei de trabalho, disse adeus ao namorado. Voltei a escrever, trouxe à tona mais versões de mim. Achei um novo propósito, ressignifiquei sonhos antigos. Reiventei-me. Hoje, tomo meu café com leite de aveia. E a vida vai bem assim.




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